terça-feira, 25 de junho de 2013

A ÁGUIA QUE QUASE VIROU GALINHA

                                                                                                   RUBEM ALVES

"O tempo está chegando quando todas as águias se transformarão em galinhas".

A ideia desta história não é minha. Meu é só o jeito de contar... Sobre uma águia que foi criada num galinheiro.

E foi aprendendo sobre o jeito galináceo de ser, de pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros...

E na medida em que aprendia ia esquecendo as únicas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim: todo aprendizado exige um esquecimento... E ela desaprendeu:

dos cumes das montanhas, dos vôos nas nuvens,

do frio das alturas,

da vista se perdendo no horizonte,

do delicioso sentimento de dignidade e liberdade ...

Como não havia ninguém que lhe falasse destas coisas, e todas as galinhas cacarejassem os mesmos catecismos, ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação hormonal, tudo grande demais, aquele bico curvo, sinal certo de acromegalia, e desejava muito que o seu coco tivesse o mesmo cheiro certo do coco das galinhas...

Um dia apareceu por lá um homem que vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.

"Que é que você faz aqui?”, ele perguntou.

"Este é o meu lugar", ela respondeu. 'Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam o chão, botam ovos e finalmente viram canja: nada se perde, utilidade total"

"Mas você não é galinha, ele disse. É uma águia".

"De jeito nenhum. Águia voa alto. Eu nem sequer voar sei. Prá dizer a verdade, nem quero. A altura me dá vertigens. É mais seguro ir andando, passo a passo"

E não houve argumento que mudasse a cabeça da águia esquecida. Até que o homem, não aguentando mais ver aquela coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou a águia à força, e a levou até o alto de uma montanha. A pobre águia começou a cacarejar de terror, mas o homem não teve compaixão: jogou-a no vazio do abismo. Foi então que o pavor, misturado a memórias que ainda moravam em seu corpo, fez as asas baterem a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranquila dignidade, até se abrirem  confiantes, reconhecendo aquele espaço imenso que lhe fora roubado. E ela finalmente compreendeu que o seu nome não era galinha, mas águia.

Esta história foi escrita na África, um profeta dizendo aos seus companheiros: “Vejam a que estado os brancos nos reduziram: águias que andam como galinhas. É preciso voar de novo”.

Mas eu senti que era muito mais que isto, porque comecei a ver galinheiros espalhados por todas as partes, e águias domesticadas e humilhadas, felizes por ciscar a terra e comer milho.

E me perguntei se não é isto que acontece nesta coisa que se chama lar, de chinelo, pijama, bob na cabeça e os mesmos cacarejos milharescos, longe, muito longe do ar frio das alturas...

E a igreja, galinheiro sagrado, em que os cacarejos se transformam em catecismos, as águias são condenadas ao silêncio e quem anda diferente é mandado para o inferno.

Também escolas, que se especializam nesta curiosa metamorfose, de transformar águias em galinhas, para que não falte canja. E os pais se rejubilam quando a magia chega ao fim, e as águias solitárias (são sempre perigosas e imprevisíveis) recebem seus diplomas galináceos. Agora são iguais como todos os demais: podem arranjar seus empregos, botar seus ovos, chocar seus filhos, até o glorioso momento de serem transformados em canja ...

E esta coisa a que se dá o nome de Estado, incrível abstração, como a Santíssima Trindade, com a diferença que agora a gente vê aqueles rostos terríveis, galináceos, dos quais desapareceu qualquer vestígios de eternidade, e discutem sobre se devem ou não usar gravata em plenário, e acham certo que se fabriquem armas (e bom negócio), e não percebem os sinais do furacão que se aproxima ...

E as águias acabam por se convencer que o seu tempo já passou.

Revista Tempo e Presença.

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