RUBEM ALVES
"O tempo está chegando quando
todas as águias se transformarão em galinhas".
A ideia desta história não é minha.
Meu é só o jeito de contar... Sobre uma águia que foi criada num galinheiro.
E foi aprendendo sobre o jeito
galináceo de ser, de pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros...
E na medida em que aprendia ia
esquecendo as únicas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim:
todo aprendizado exige um esquecimento... E ela desaprendeu:
dos cumes das montanhas, dos vôos
nas nuvens,
do frio das alturas,
da vista se perdendo no horizonte,
do delicioso sentimento de dignidade
e liberdade ...
Como não havia ninguém que lhe
falasse destas coisas, e todas as galinhas cacarejassem os mesmos catecismos,
ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação
hormonal, tudo grande demais, aquele bico curvo, sinal certo de acromegalia, e
desejava muito que o seu coco tivesse o mesmo cheiro certo do coco das galinhas...
Um dia apareceu por lá um homem que
vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.
"Que é que você faz aqui?”, ele
perguntou.
"Este é o meu lugar", ela
respondeu. 'Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam
o chão, botam ovos e finalmente viram canja: nada se perde, utilidade
total"
"Mas você não é galinha, ele
disse. É uma águia".
"De jeito nenhum. Águia voa
alto. Eu nem sequer voar sei. Prá dizer a verdade, nem quero. A altura me dá
vertigens. É mais seguro ir andando, passo a passo"
E não houve argumento que mudasse a
cabeça da águia esquecida. Até que o homem, não aguentando mais ver aquela
coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou a águia à força, e a
levou até o alto de uma montanha. A pobre águia começou a cacarejar de terror,
mas o homem não teve compaixão: jogou-a no vazio do abismo. Foi então que o
pavor, misturado a memórias que ainda moravam em seu corpo, fez as asas baterem
a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranquila dignidade, até se
abrirem confiantes, reconhecendo aquele
espaço imenso que lhe fora roubado. E ela finalmente compreendeu que o seu nome
não era galinha, mas águia.
Esta história foi escrita na África,
um profeta dizendo aos seus companheiros: “Vejam a que estado os brancos nos
reduziram: águias que andam como galinhas. É preciso voar de novo”.
Mas eu senti que era muito mais que
isto, porque comecei a ver galinheiros espalhados por todas as partes, e águias
domesticadas e humilhadas, felizes por ciscar a terra e comer milho.
E me perguntei se não é isto que
acontece nesta coisa que se chama lar, de chinelo, pijama, bob na cabeça e os
mesmos cacarejos milharescos, longe, muito longe do ar frio das alturas...
E a igreja, galinheiro sagrado, em
que os cacarejos se transformam em catecismos, as águias são condenadas ao
silêncio e quem anda diferente é mandado para o inferno.
Também escolas, que se especializam
nesta curiosa metamorfose, de transformar águias em galinhas, para que não
falte canja. E os pais se rejubilam quando a magia chega ao fim, e as águias
solitárias (são sempre perigosas e imprevisíveis) recebem seus diplomas
galináceos. Agora são iguais como todos os demais: podem arranjar seus
empregos, botar seus ovos, chocar seus filhos, até o glorioso momento de serem
transformados em canja ...
E esta coisa a que se dá o nome de
Estado, incrível abstração, como a Santíssima Trindade, com a diferença que
agora a gente vê aqueles rostos terríveis, galináceos, dos quais desapareceu
qualquer vestígios de eternidade, e discutem sobre se devem ou não usar gravata
em plenário, e acham certo que se fabriquem armas (e bom negócio), e não
percebem os sinais do furacão que se aproxima ...
E as águias acabam por se convencer
que o seu tempo já passou.
Revista Tempo e Presença.
Nenhum comentário:
Postar um comentário